Obs: Texto escrito originalmente em setembro de 2017
Filmes que retratam a infância ou fazem um recorte sobre
essa fase da vida humana muitas vezes são extraordinariamente profundos e
exaltam a importância que existe na perspectiva do olhar da própria criança
sobre o mundo à sua volta e principalmente sobre quem ela é. Tomboy é um desses filmes, mas que traz
um aspecto a mais: retrata de forma bastante sutil e interessante a identidade
de gênero na infância.
Dirigido pela francesa Céline
Sciamma, o filme conta a história de Laure, uma menina de 10 anos que se
identifica mais como um garoto. Quando ela e sua família se mudam para um novo
bairro, ela começa a se apresentar como Mikael para seus novos colegas de
vizinhança.
A forma como o roteiro e a direção lidam com questões de
identidade de gênero são muito bem executadas, nunca estereotipando sua
personagem uma vez que o foco da trama é desenvolver as descobertas de Mikael
sobre sua personalidade e individualidade bem como a maneira como se enxerga
para estar bem consigo mesma. Outro ponto muito relevante é a construção das
relações afetivas entre a protagonista e os outros personagens. A relação entre
Mikael e sua irmãzinha, Jeanne, é muito meiga e delicada e todas as cenas em
que acontecem suas brincadeiras são de uma natureza encantadora. O carinho que Jeanne demonstra por Mikael
mostra de fato a cumplicidade que existe entre irmãos e ressalto aqui como
crianças são muito mais aptas a entender a
importância de valorizar a verdadeira identidade de cada um. Digo isso porque é
muito bonita a forma como Jeanne compreende Mikael e sua escolha de ser como é,
da maneira mais natural possível, como deveria ser na nossa sociedade. (E
infelizmente vemos que há um preconceito enorme, principalmente em nosso país).
As pessoas precisam entender a importância que existe no respeito pela
identidade de cada um.
Descrição da imagem: Jeanne está em pé cortando o cabelo de Mikael com uma tesoura. |
De início, Mikael tem a facilidade de se enturmar com os
garotos da vizinhança e com Lisa, a única garota do grupo, que parece ter uma paixãozinha
por Mikael e o interessante é que a diretora não procura sexualizar essa
relação entre as duas personagens, afinal, como eu disse antes, o foco do filme
é justamente a descoberta de identidade. As cenas entre Mikael e Lisa são
também muito delicadas e meigas e há uma específica, onde a amiga passa
maquiagem no rosto de Mikael e diz: “Você seria uma menina linda”. De fato,
Mikael tem seu rosto e traços bastante femininos, mas ela não se sente bem como
uma garota e essa percepção interna é muito importante para aos poucos Mikael
ir se afirmando como realmente é. Embora Mikael passe a se sentir à vontade com
suas novas amizades, há um empecilho que começa a gerar um certo incômodo
dentro de si: o seu próprio corpo. E mais uma vez precisamos dar o crédito à
diretora pela forma como ela filma e retrata sutilmente os momentos em que sua
protagonista passa a indagar em sua cabeça sobre sua própria anatomia.
A atriz Zoé Héran interpreta
Mikael com uma maturidade tão deslumbrante que impressiona o expectador. A sua
performance e sua compreensão para com o desenvolvimento de sua personagem foram essenciais para a construção de toda a
obra. Fico muito feliz por ela ter levado um prêmio por esse filme (ela ganhou
como Melhor Atriz no Buenos Aires
International Festival of Independent Cinema). Sua sensação de conforto assim
como seus questionamentos e como ela projeta através de suas ações a sua
autoafirmação numa cena tão sutil e ao mesmo tempo tão grandiosa (uma das cenas
finais do filme), faz com que Zoé Héran
esteja na lista das melhores performances infanto-juvenis do cinema.
Descrição da imagem: Lisa, de cabelos soltos e vestindo blusa lilás, está de frente á Mikael e cobre os olhos deste com suas mãos. Os dois estão próximos a um lago e algumas árvores. |
A diretora Céline
Sciamma também faz um trabalho magnífico com esse filme e tem uma
sensibilidade em como filmar uma personagem com muitas camadas e todas as
relações entre ela e seus coadjuvantes, tornando o filme leve e muito acessível
até para aqueles que não são acostumados com o estilo de cinema independente da
Europa. Além disso, a forma como ela traz à tona um tema contemporâneo e muito
importante, que hoje em dia gera inúmeras discussões, faz com que esse filme se
projete como uma obra essencial para o cinema LGBTQ+ e para todos, afinal, é
uma obra super atual feita com muito coração e que reflete o quanto é importante o respeito à identidade e individualidade de
cada um.
O retrato honesto e orgânico da infância também é outro
aspecto que precisa ser reconhecido neste filme e Sciamma procura buscar
elementos poéticos e também técnicos que pontuam a realização do longa dentro
dessa temática. E todos esses elementos, desde uma fotografia sempre clara e
ensolarada até planos abertos e outros mais intimistas, fazem de Tomboy uma obra que dialoga com a
atmosfera em que seus personagens estão inseridos tornado a história verdadeira.
A habilidade que a diretora tratou de
tal assunto é inspiradora assim como o mote principal sobre a autodescoberta de
Mikael e todas essas qualidades transformam-no em um filme mais que especial.
Trailer legendado
FICHA TÉCNICA:
Gênero: Drama
Direção: Céline Sciamma
Roteiro: Céline Sciamma
Elenco: Zoé Héran, Malonn Lévana, Jeanne Disson, Sophie Cattani, Mathieu Demy, Rayan Boubekri, Yohan Vero, Noah Vero, Cheyenne Lainé, Christel Baras, Valérie Roucher
Produção: Bénédicte Couvreur
Fotografia: Crystel Fournier
Trilha sonora: Jean-Baptiste de Laubier, Jerôme Echenoz
Edição: Julien Lacheray
Design de produção: Thomas Grézaud,
País: França
Ano: 2011
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