Descrição da imagem: as atrizes Eliza Scanlen, Amy Adams e Patricia Clarkson em foto promocional da série. Atrás delas está um belo papel de parede verde com flores. |
Obs 1: O texto contém spoilers da trama
A era das séries protagonizadas por mulheres chegou para ficar. Se listarmos todas as produções dos canais de tv e serviços de streaming, podemos constatar que muitas são séries cujas histórias estão centradas em personagens femininas. E são justamente histórias fortes, relevantes, bem escritas e felizmente reconhecidas pelas suas qualidades. Exemplos não faltam: ‘The Handmaid’s Tale’ do Hulu; ‘Glow’, ‘Jessica Jones’ e ‘Orange is the New Black’ da Netflix; a 1ª temporada de ‘The Sinner’ do USA; ‘Big Little Lies’ e ‘Insecure’ da HBO. E falando em HBO, este ano o canal acertou mais uma vez ao trazer uma excelente produção, adaptando o livro Sharp Objects, escrito por Gillian Flynn (autora também do best-seller Gone Girl).
Estórias ambientadas em
pequenas cidades costumam trazer plots específicos que muitas vezes estão centradas
em investigações de assassinatos. E em Sharp Objects, essa é uma de suas características,
mas ao contrário do que muita gente esperava, a série não é sobre o “Quem Matou” e sim sobre porque as personagens
centrais são como são. Tudo é relevante para entendermos a psique e as
personalidades de cada uma e ao mesmo tempo esses estudos de personagem não
deixam de ser pistas para o espectador tentar solucionar os crimes. Traumas do
passado, doenças psicológicas, segredos de uma cidade pacata, tentativas de ser
o centro das atenções: tudo isso faz parte da narrativa que nos é apresentada.
A jornada da nossa
protagonista, Camille Preaker (Amy Adams),
durante os 8 episódios, nos fazem embarcar num redemoinho de sentimentos. Isso
porque, a narrativa escolhida pelos roteiristas (entre eles, a própria autora
do livro) e a direção primorosa de Jean
Marc-Vallée nos fazem ser partes de Camille. Desde sua saída de St. Louis,
quando seu editor a pede para escrever uma matéria para o jornal sobre o assassinato
da jovem Ann Nash e o sumiço de Natalie Keene em Wind Gap (cidade natal de
Camille), nós já estamos intimamente ligados a Camille. De cara, já entendemos
que voltar para aquela cidade não trará coisas boas para ela e que fantasmas do
seu passado irão insistir em atormentá-la. Mas ao mesmo tempo em que entendemos
Camille, a narrativa nos deixa intrigados com a personagem. Os flashbacks de
sua infância e adolescência mostrados constantemente são importantes para aos
poucos decifrarmos a personagem. Nesse pacote de enigmas que permeiam Camille,
estão as palavras escritas por todo seu corpo, frutos de sua automutilação e
são algumas dessas palavras que nomeiam os episódios (Dirt, Cherry, Falling,
por exemplo). A perda de sua irmã mais nova, Marian (Lulu Wilson) anos atrás, deixou sequelas que parecem que nunca
serão curadas.
Descrição da imagem: A atriz Sophia Lillis (Camille adolescente) olhando para um espelho |
E não é apenas Camille que é
decifrada ao longo da série, mas também sua mãe Adora Crellin (Patricia Clarkson) e sua meia-irmã,
Amma (Eliza Scanlen). Adora
representa a mulher e mãe perfeita da alta sociedade de uma cidade pequena: sempre
arrumada com seus vestidos impecáveis e sempre de cores claras; a dona de um
matadouro de porcos ao lado do marido Alan (Henry Czerny); a mãe extremamente protetora e uma pessoa preocupada
em ajudar garotas consideradas “desajustadas”, como Ann e Natalie eram
conhecidas. Porém, ela é uma personagem bem mais complexa que isso e o desenvolvimento
dela na trama também, principalmente quando descobrimos que ela possui Síndrome
de Münchhausen por Procuração, síndrome que faz uma mãe ou pai simular doenças intencionalmente
em seus filhos para que estes precisem de cuidados e atenção dela ou dele a
todo momento. A descoberta da morte de Marian por envenenamento involuntário dá
margens para pensarmos que Adora poderia ter papel nos assassinatos de Ann e
Natalie. Mas para mim, confesso que os assassinatos seriam obras de algum
ritual daquela cidade e que Adora pudesse estar indiretamente ligada aos
crimes, uma vez que as garotas tiveram seus dentes arrancados por alicates
usados para extrair dentes de porcos. Mas essa teoria é quebrada nos segundos
finais do episódio final, que já já comentarei.
A relação entre Camille e Adora
é trabalhada de forma tensa e impecável, principalmente por conta das atuações espetaculares
de Amy Adams e Patricia Clarkson, mas também pelo roteiro minuciosamente escrito,
em que deixa detalhes intrínsecos para o desenvolvimento das personagens. Dois
exemplos emblemáticos são as cenas onde Adora fala como sua própria mãe a
tratava na infância (beliscando sua filha enquanto dormia por exemplo) e onde ela fala para Camille que nunca a amou
porque Camille nunca deixou ser cuidada por ela e por ser fria como o pai (personagem
que não conhecemos).
Descrição da imagem: Adora (Patricia Clarkson) e Camille (Amy Adams) se olhando seriamente. Mais atrás está Amma (Eliza Scanlen). |
E para completar a tríade de
personagens centrais, temos a jovem Amma, talvez a mais enigmática das três.
Sua dualidade é trabalhada incrivelmente pelo roteiro, pela direção que procura
focar cada uma de suas expressões quando está em cena e claro pelo também
excelente trabalho da novata Eliza
Scanlen. Amma consegue manipular tudo e todos ao seu redor, fazendo o papel
da bonequinha da mãe, brincando com sua casa de bonecas (uma réplica da mansão
dos Crellin), deixando ser cuidada e “medicada” por ela, por pensar que ao
fazer isso está controlando toda a situação e, quando está com as amigas, se despe
da pele de garota certinha para curtir e se drogar com elas. A relação entre Amma e sua mãe é um clássico exemplo
de relacionamento tóxico, de um ciclo vicioso para ganhar atenção uma da outra.
E claro, que com a chegada de Camille, esse ciclo estava na iminência de ser quebrado.
(“Camille was a bad influence for Marian. She’s a bad influence for you,
Amma”).
A ambientação é algo primordial
para uma série ser verossímil com sua estória e em Sharp Objects isso é elevado
à uma gigantesca potência. A cidade de Wind Gap também se torna uma personagem
importante, assim como acontece com a cidade Twin Peaks em Twin Peaks, série criada por David
Lynch e Mark Frost. Suas ruas
quase desertas, o calor que parece não ter fim, o som da natureza que a cerca,
onde ao invés de ser pacífica, parece sufocante. Aliás, o som junto com a ambientação
é um detalhe importante. Se na cidade, tudo parece fora do lugar e o ruído dos
grilos é quase ensurdecedor, na casa dos Crellin tudo é impecável, desde o
papel de parede verde florido até as músicas tocadas nos vinis de Alan.
Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) em uma rua de Wind Gap, em frente à uma loja de conveniência |
Os coadjuvantes, não menos
importantes para a trama, estão ali para completar a complexidade que é a
cidade de Wind Gap. Desde aqueles que são de antemão os principais suspeitos pela
morte das garotas, Bob Nash (pai de Ann e interpretado por Will Chase) e principalmente John Keene (irmão de Natalie;
interpretado por Taylor John Smith), até aqueles que parecem sempre saber de
algo muito errado naquela cidade, como o xerife Vickery (Matt Craven), a hipocondríaca e alcoólatra Jackie (Elizabeth Perkins), o marido Alan (Henry Czerny) e a líder de torcida Ashley (Madison Davenport), namorada de John. Mas os personagens de “fora”,
ou seja, aqueles que de fato não conhecem a cidade, como o detetive Richard
Willis (Chris Messina) e o próprio
editor do jornal, Frank Curry (Miguel
Sandoval), são peças chave para o desfecho eficaz da história. Desfecho
esse, que sem o plano genial de Camille, tudo poderia ir por água abaixo. Afinal,
sem simular que estava doente para ganhar a atenção da mãe, Camille não
conseguiria salvar Amma de uma possível morte semelhante à de Marian.
Mas antes de comentar o “polêmico”
desfecho do desfecho, preciso enaltecer a direção impecável de Jean Marc- Vallée. Assim como seu
trabalho em Big Little Lies, aqui em
Sharp Objects ele soube dosar muito
bem o mistério da narrativa e através de cortes inteligentes entre o presente e
passado, foi construindo uma tensão episódio por episódio. O mesmo vale para a
direção de fotografia assinada por Yves
Bélanger e Ronald Plante e pelo
departamento de som assinado por Susan
Jacobs. Aliás, fiquei muito satisfeita pela equipe por trás das câmeras conter
um grande número de mulheres, começando pela criadora da série, Marti Noxon e por algumas das montadoras
como Véronique Barbe e Dominique Champagne, responsáveis pela
edição magnífica da série.
Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) deitada numa cama recebendo uma colherada com um remédio pelas mãos de sua mãe Adora (Patricia Clarkson) |
E para fechar, não tem como não
falar sobre o desfecho de tudo. Depois que vimos Adora ser presa e vimos
Camille voltar a St. Louis levando Amma para morar com ela na cidade grande, um
dos maiores plot twits dos últimos anos é apresentado de forma genial. Quando
Camille descobre os dentes das garotas dentro da casa de bonecas da irmã, como
se fossem os pisos de marfim de um dos quartos, mostrando que Amma é a verdadeira
assassina da história, a sensação é a de que sua cabeça fique “bugada” por
alguns segundos. (Don’t tell mama!)
As rápidas cenas pós-créditos
foram suficientes e mais que satisfatórias. Afinal, como eu disse no início do
texto, a série é mais sobre suas personagens e quão quebradas elas são ou
estão. Os assassinatos e sua investigação são apenas um pano de fundo para o desenvolvimento
da história. Se voltarmos e assistirmos tudo de novo, podemos perceber que
várias das pistas estavam minuciosamente colocadas em pequenos detalhes como,
por exemplo, a obsessão de Amma em ser a deusa Perséfone, deusa do submundo na
mitologia grega e obviamente sua relação tóxica com a mãe e sua noção de estar
no controle e ser o centro das atenções da família. Quando viu que sua mãe
estava se afeiçoando a Ann e Natalie, sua psicopatia aflorou. Além de uma cena
onde o xerife encontra as duas amigas (e cúmplices) de Amma andando de patins
pelas ruas e comenta que elas precisam ter cuidado com homens bêbados ao
volante. A resposta delas é simples e direta: “Or she. Don’t be sexist.”
Descrição da imagem: Amma (Eliza Scanlen) vestida de Perséfone (vestido branco e coroa de flores) |
Acompanhar Sharp Objects foi
uma experiência incrível como amante de séries complexas e cheias de camadas,
assim como foi acompanhar Twin Peaks (série que sou fã de carteirinha). Aliás,
não pude deixar de fazer alguns paralelos entre as duas enquanto assistia Sharp
Objects. Pequeníssimos detalhes como focar ventiladores de teto, foram como rimas
visuais entre a casa dos Crellin e a casa dos Palmer. Afinal, Wind Gap e Twin
Peaks são sinistras por natureza.
E Emmy Rainha Adams...ops, Amy.
Os próximos prêmios ano que vem serão todos seus!
Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) no quarto de Amma com um olhar de preocupação e incredulidade |
FICHA TÉCNICA:
Gênero: Drama, Mistério, Thriller
Direção: Jean Marc-Vallée; Criadora: Marti Noxon
Roteiro: Gillian Flynn, Ariella Blejer, Dawn Kamoche, Scott Brown, Vince Calandra, Alex Metcalf
Elenco: Amy Adams, Patricia Clarkson, Eliza Scanlen, Chris Messina, Henry Czerny, Matt Craven, Elizabeth Perkins, Taylor John Smith, Madison Davenport, Sophia Liillis, Lulu Wilson, Miguel Sandoval, Barbara Eve Harris, Violet Brinson, April Brinson, Emily Yancy, David Sullivan, Sydney Sweeney, Will Chase, Jackson Hurst
Produção: David Auge
Direção: Jean Marc-Vallée; Criadora: Marti Noxon
Roteiro: Gillian Flynn, Ariella Blejer, Dawn Kamoche, Scott Brown, Vince Calandra, Alex Metcalf
Produção: David Auge
Fotografia: Yvés Bélanger, Ronald Plante
Trilha sonora/ Departamento de música: Susan Jacobs
Edição: Jean Marc-Vallée, Véronique Barbe, Maxime Lahaie, Émile
Vallée, Justin
Lachance, Dominique
Champagne, David Berman
Figurino: Alix Friedberg
Design de produção: John Paino
Direção de arte: Austin Gorg
País: EUA
Ano: 2018
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