terça-feira, 4 de setembro de 2018

CRÍTICA DA SÉRIE | SHARP OBJECTS (2018)

Descrição da imagem: as atrizes Eliza Scanlen, Amy Adams e Patricia Clarkson em foto promocional da série. Atrás delas está um belo papel de parede verde com flores.


Obs 1: O texto contém spoilers da trama
Obs 2: Não li o livro que originou a série. Esta é uma crítica apenas da série da HBO

A era das séries protagonizadas por mulheres chegou para ficar. Se listarmos todas as produções dos canais de tv e serviços de streaming, podemos constatar que muitas são séries cujas histórias estão centradas em personagens femininas. E são justamente histórias fortes, relevantes, bem escritas e felizmente reconhecidas pelas suas qualidades. Exemplos não faltam: ‘The Handmaid’s Tale’ do Hulu; ‘Glow’, ‘Jessica Jones’ e ‘Orange is the New Black’ da Netflix; a 1ª temporada de ‘The Sinner’ do USA; ‘Big Little Lies’ e ‘Insecure’ da HBO. E falando em HBO, este ano o canal acertou mais uma vez ao trazer uma excelente produção, adaptando o livro  Sharp Objects, escrito por Gillian Flynn (autora também do best-seller Gone Girl).

Estórias ambientadas em pequenas cidades costumam trazer plots específicos que muitas vezes estão centradas em investigações de assassinatos. E em Sharp Objects, essa é uma de suas características, mas ao contrário do que muita gente esperava, a série não é sobre o “Quem Matou” e sim sobre porque as personagens centrais são como são. Tudo é relevante para entendermos a psique e as personalidades de cada uma e ao mesmo tempo esses estudos de personagem não deixam de ser pistas para o espectador tentar solucionar os crimes. Traumas do passado, doenças psicológicas, segredos de uma cidade pacata, tentativas de ser o centro das atenções: tudo isso faz parte da narrativa que nos é apresentada.

A jornada da nossa protagonista, Camille Preaker (Amy Adams), durante os 8 episódios, nos fazem embarcar num redemoinho de sentimentos. Isso porque, a narrativa escolhida pelos roteiristas (entre eles, a própria autora do livro) e a direção primorosa de Jean Marc-Vallée nos fazem ser partes de Camille. Desde sua saída de St. Louis, quando seu editor a pede para escrever uma matéria para o jornal sobre o assassinato da jovem Ann Nash e o sumiço de Natalie Keene em Wind Gap (cidade natal de Camille), nós já estamos intimamente ligados a Camille. De cara, já entendemos que voltar para aquela cidade não trará coisas boas para ela e que fantasmas do seu passado irão insistir em atormentá-la. Mas ao mesmo tempo em que entendemos Camille, a narrativa nos deixa intrigados com a personagem. Os flashbacks de sua infância e adolescência mostrados constantemente são importantes para aos poucos decifrarmos a personagem. Nesse pacote de enigmas que permeiam Camille, estão as palavras escritas por todo seu corpo, frutos de sua automutilação e são algumas dessas palavras que nomeiam os episódios (Dirt, Cherry, Falling, por exemplo). A perda de sua irmã mais nova, Marian (Lulu Wilson) anos atrás, deixou sequelas que parecem que nunca serão curadas.

Descrição da imagem: A atriz Sophia Lillis (Camille adolescente) olhando para um espelho


E não é apenas Camille que é decifrada ao longo da série, mas também sua mãe Adora Crellin (Patricia Clarkson) e sua meia-irmã, Amma (Eliza Scanlen). Adora representa a mulher e mãe perfeita da alta sociedade de uma cidade pequena: sempre arrumada com seus vestidos impecáveis e sempre de cores claras; a dona de um matadouro de porcos ao lado do marido Alan (Henry Czerny); a mãe extremamente protetora e uma pessoa preocupada em ajudar garotas consideradas “desajustadas”, como Ann e Natalie eram conhecidas. Porém, ela é uma personagem bem mais complexa que isso e o desenvolvimento dela na trama também, principalmente quando descobrimos que ela possui Síndrome de Münchhausen por Procuração, síndrome que faz uma mãe ou pai simular doenças intencionalmente em seus filhos para que estes precisem de cuidados e atenção dela ou dele a todo momento. A descoberta da morte de Marian por envenenamento involuntário dá margens para pensarmos que Adora poderia ter papel nos assassinatos de Ann e Natalie. Mas para mim, confesso que os assassinatos seriam obras de algum ritual daquela cidade e que Adora pudesse estar indiretamente ligada aos crimes, uma vez que as garotas tiveram seus dentes arrancados por alicates usados para extrair dentes de porcos. Mas essa teoria é quebrada nos segundos finais do episódio final, que já já comentarei.

A relação entre Camille e Adora é trabalhada de forma tensa e impecável, principalmente por conta das atuações espetaculares de Amy Adams e Patricia Clarkson, mas também pelo roteiro minuciosamente escrito, em que deixa detalhes intrínsecos para o desenvolvimento das personagens. Dois exemplos emblemáticos são as cenas onde Adora fala como sua própria mãe a tratava na infância (beliscando sua filha enquanto dormia por exemplo)  e onde ela fala para Camille que nunca a amou porque Camille nunca deixou ser cuidada por ela e por ser fria como o pai (personagem que não conhecemos).

Descrição da imagem: Adora (Patricia Clarkson) e Camille (Amy Adams) se olhando seriamente. Mais atrás está Amma (Eliza Scanlen).



E para completar a tríade de personagens centrais, temos a jovem Amma, talvez a mais enigmática das três. Sua dualidade é trabalhada incrivelmente pelo roteiro, pela direção que procura focar cada uma de suas expressões quando está em cena e claro pelo também excelente trabalho da novata Eliza Scanlen. Amma consegue manipular tudo e todos ao seu redor, fazendo o papel da bonequinha da mãe, brincando com sua casa de bonecas (uma réplica da mansão dos Crellin), deixando ser cuidada e “medicada” por ela, por pensar que ao fazer isso está controlando toda a situação e, quando está com as amigas, se despe da pele de garota certinha para curtir e se drogar com elas.  A relação entre Amma e sua mãe é um clássico exemplo de relacionamento tóxico, de um ciclo vicioso para ganhar atenção uma da outra. E claro, que com a chegada de Camille, esse ciclo estava na iminência de ser quebrado. (“Camille was a bad influence for Marian. She’s a bad influence for you, Amma”).





A ambientação é algo primordial para uma série ser verossímil com sua estória e em Sharp Objects isso é elevado à uma gigantesca potência. A cidade de Wind Gap também se torna uma personagem importante, assim como acontece com a cidade Twin Peaks em Twin Peaks, série criada por David Lynch e Mark Frost. Suas ruas quase desertas, o calor que parece não ter fim, o som da natureza que a cerca, onde ao invés de ser pacífica, parece sufocante. Aliás, o som junto com a ambientação é um detalhe importante. Se na cidade, tudo parece fora do lugar e o ruído dos grilos é quase ensurdecedor, na casa dos Crellin tudo é impecável, desde o papel de parede verde florido até as músicas tocadas nos vinis de Alan.

Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) em uma rua de Wind Gap, em frente à uma loja de conveniência

Os coadjuvantes, não menos importantes para a trama, estão ali para completar a complexidade que é a cidade de Wind Gap. Desde aqueles que são de antemão os principais suspeitos pela morte das garotas, Bob Nash (pai de Ann e interpretado por Will Chase) e principalmente John Keene (irmão de Natalie; interpretado por Taylor John Smith), até aqueles que parecem sempre saber de algo muito errado naquela cidade, como o xerife Vickery (Matt Craven), a hipocondríaca e alcoólatra Jackie (Elizabeth Perkins), o marido Alan (Henry Czerny) e a líder de torcida Ashley (Madison Davenport), namorada de John. Mas os personagens de “fora”, ou seja, aqueles que de fato não conhecem a cidade, como o detetive Richard Willis (Chris Messina) e o próprio editor do jornal, Frank Curry (Miguel Sandoval), são peças chave para o desfecho eficaz da história. Desfecho esse, que sem o plano genial de Camille, tudo poderia ir por água abaixo. Afinal, sem simular que estava doente para ganhar a atenção da mãe, Camille não conseguiria salvar Amma de uma possível morte semelhante à de Marian.



Mas antes de comentar o “polêmico” desfecho do desfecho, preciso enaltecer a direção impecável de Jean Marc- Vallée. Assim como seu trabalho em Big Little Lies, aqui em Sharp Objects ele soube dosar muito bem o mistério da narrativa e através de cortes inteligentes entre o presente e passado, foi construindo uma tensão episódio por episódio. O mesmo vale para a direção de fotografia assinada por Yves Bélanger e Ronald Plante e pelo departamento de som assinado por Susan Jacobs. Aliás, fiquei muito satisfeita pela equipe por trás das câmeras conter um grande número de mulheres, começando pela criadora da série, Marti Noxon e por algumas das montadoras como Véronique Barbe e Dominique Champagne, responsáveis pela edição magnífica da série.

Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) deitada numa cama recebendo uma colherada com um remédio pelas mãos de sua mãe Adora (Patricia Clarkson)




E para fechar, não tem como não falar sobre o desfecho de tudo. Depois que vimos Adora ser presa e vimos Camille voltar a St. Louis levando Amma para morar com ela na cidade grande, um dos maiores plot twits dos últimos anos é apresentado de forma genial. Quando Camille descobre os dentes das garotas dentro da casa de bonecas da irmã, como se fossem os pisos de marfim de um dos quartos, mostrando que Amma é a verdadeira assassina da história, a sensação é a de que sua cabeça fique “bugada” por alguns segundos. (Don’t tell mama!)



As rápidas cenas pós-créditos foram suficientes e mais que satisfatórias. Afinal, como eu disse no início do texto, a série é mais sobre suas personagens e quão quebradas elas são ou estão. Os assassinatos e sua investigação são apenas um pano de fundo para o desenvolvimento da história. Se voltarmos e assistirmos tudo de novo, podemos perceber que várias das pistas estavam minuciosamente colocadas em pequenos detalhes como, por exemplo, a obsessão de Amma em ser a deusa Perséfone, deusa do submundo na mitologia grega e obviamente sua relação tóxica com a mãe e sua noção de estar no controle e ser o centro das atenções da família. Quando viu que sua mãe estava se afeiçoando a Ann e Natalie, sua psicopatia aflorou. Além de uma cena onde o xerife encontra as duas amigas (e cúmplices) de Amma andando de patins pelas ruas e comenta que elas precisam ter cuidado com homens bêbados ao volante. A resposta delas é simples e direta: “Or she. Don’t be sexist.”

Descrição da imagem: Amma (Eliza Scanlen) vestida de Perséfone (vestido branco e coroa de flores)


Acompanhar Sharp Objects foi uma experiência incrível como amante de séries complexas e cheias de camadas, assim como foi acompanhar Twin Peaks (série que sou fã de carteirinha). Aliás, não pude deixar de fazer alguns paralelos entre as duas enquanto assistia Sharp Objects. Pequeníssimos detalhes como focar ventiladores de teto, foram como rimas visuais entre a casa dos Crellin e a casa dos Palmer. Afinal, Wind Gap e Twin Peaks são sinistras por natureza.



E Emmy Rainha Adams...ops, Amy. Os próximos prêmios ano que vem serão todos seus!  

Descrição da imagem: Camille (Amy Adams) no quarto de Amma com um olhar de preocupação e incredulidade



FICHA TÉCNICA:

Gênero: Drama, Mistério, Thriller
Direção: Jean Marc-Vallée;
Criadora: Marti Noxon

Roteiro: Gillian Flynn, Ariella Blejer, Dawn Kamoche, Scott Brown, Vince Calandra, Alex Metcalf
Elenco: Amy Adams, Patricia Clarkson, Eliza Scanlen, Chris Messina, Henry Czerny, Matt Craven, Elizabeth Perkins, Taylor John Smith, Madison Davenport, Sophia Liillis, Lulu Wilson, Miguel Sandoval, Barbara Eve Harris, Violet Brinson, April Brinson, Emily Yancy, David Sullivan, Sydney Sweeney, Will Chase, Jackson Hurst
Produção: David Auge
Fotografia: Yvés Bélanger, Ronald Plante
Trilha sonora/ Departamento de música: Susan Jacobs
Edição: Jean Marc-Vallée, Véronique Barbe, Maxime LahaieÉmile Vallée, Justin Lachance, Dominique Champagne, David Berman
Figurino: Alix Friedberg
Design de produção: John Paino
Direção de arte: Austin Gorg
País: EUA
Ano: 2018








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